No campo da medicina, as doenças raras ou doenças órfãs são aquelas que afetam menos de 1 em cada 2000 pessoas. Embora individualmente cada doença possa ser pouco comum, no conjunto elas afetam um grande número de pessoas ao redor do mundo. Algumas dessas doenças têm tratamentos, mas muitas outras ainda não possuem opções terapêuticas efetivas. Com o avanço da tecnologia de edição genética, pesquisadores têm explorado novas possibilidades de tratamento para algumas dessas doenças.
Antes de abordarmos o uso da edição genética no tratamento de doenças raras, é importante entender o que é essa tecnologia. A edição genética é uma técnica que permite alterar o DNA de um organismo vivo de forma precisa e controlada. Essa técnica utiliza enzimas chamadas nucleases para cortar o DNA em locais específicos e, dessa forma, introduzir modificações nesses trechos. A edição genética pode ser aplicada tanto em células somáticas (as células do corpo humano) como em células germinativas (as células reprodutivas).
As nucleases utilizadas na edição genética mais comumente são as nucleases do tipo CRISPR/Cas. Essa técnica funciona a partir do sistema imunológico de bactérias que utilizam as nucleases para cortar o DNA de vírus invasores. Utilizando a CRISPR/Cas, os pesquisadores conseguem programar onde as nucleases irão cortar o DNA, possibilitando a correção de mutações ou a inserção de novos genes.
O desenvolvimento de tratamentos para doenças raras é uma área complexa e desafiadora da medicina. Devido à baixa incidência dessas doenças, muitas vezes é difícil encontrar pacientes suficientes para testar novos tratamentos e, além disso, o processo de aprovação de novas terapias pode ser longo e oneroso.
No entanto, a edição genética oferece novas perspectivas para o tratamento dessas doenças. Por exemplo, é possível utilizar células do próprio paciente e editá-las em laboratório para corrigir a mutação causadora da doença. Essas células editadas podem ser então reintroduzidas no paciente, o que reduz a chance de o organismo rejeitá-las. Essa abordagem pode ser utilizada, por exemplo, no tratamento de algumas doenças genéticas do sangue, como a anemia falciforme.
Outra possibilidade é a utilização da edição genética nas células reprodutivas, o que permitiria a correção de mutações genéticas antes mesmo do nascimento da criança. Essa técnica, chamada de edição germinativa, ainda não é amplamente aceita do ponto de vista ético e regulatório em muitos países, mas tem sido objeto de debate na comunidade científica e na sociedade civil.
A doença de Huntington é uma doença rara neurodegenerativa hereditária que causa a morte de células cerebrais ao longo do tempo, resultando em problemas de movimento, memória e comportamento. Infelizmente, ainda não existe cura para a doença.
No entanto, em 2019, pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego publicaram um estudo na revista Nature Medicine em que utilizaram a edição genética para reduzir a expressão do gene mutado que causa a doença. Os pesquisadores utilizaram a técnica CRISPR/Cas para cortar o DNA em um local específico e, assim, inativar o gene defeituoso. O estudo foi realizado em células humanas em cultura e em camundongos transgênicos que possuíam a mutação da doença de Huntington.
Os resultados foram promissores: a terapia génica reduziu a produção de proteína mutada em até 85% nas células humanas e diminuiu a perda de neurônios em até 90% nos camundongos. Embora ainda haja muitos desafios a serem enfrentados antes que essa terapia possa ser testada em humanos, o estudo representa um avanço significativo para o tratamento da doença de Huntington.
Embora promissora, a edição genética também levanta questões éticas e regulatórias importantes. Por exemplo, a edição germinativa levanta preocupações sobre a possibilidade de se criar "bebês de design" ou de se selecionar características genéticas desejadas para as próximas gerações. Além disso, é necessário considerar a segurança e a eficácia da terapia génica e garantir que os pacientes e suas famílias estejam plenamente informados sobre os riscos e benefícios envolvidos.
Vários países já criaram legislação específica para regular a edição genética, incluindo o Brasil, que em 2018 aprovou uma resolução do Conselho Nacional de Saúde que estabelece diretrizes para o uso dessa técnica. A edição genética deve ser utilizada de forma ética e responsável, sempre com o objetivo de promover a saúde e o bem-estar das pessoas.
Em resumo, a edição genética é uma técnica inovadora que oferece novas possibilidades para o tratamento de doenças raras. Embora ainda haja muitos desafios a serem enfrentados, os resultados obtidos até agora indicam que essa tecnologia pode representar um avanço significativo para a medicina. No entanto, é importante manter uma perspectiva crítica e sempre considerar as implicações éticas e regulatórias envolvidas.